Os numerosos engenheiros indianos, cujo papel mais conhecido é o de ajudar empresas ocidentais de países ricos a se expandir ou cortar custos, estão agora voltando a atenção para o poder aquisitivo da própria população indiana, de 1,1 bilhão de habitantes.
A tendência, que se manifestou em julho, quando o Nano, o pequenino carro de US$ 2.200 da Tata Motors, chegou às ruas da Índia, gerou uma quantidade de novos produtos destinados a gente com pouco dinheiro mas que aspira a provar o gostinho de uma vida melhor. Muitos produtos não são só versões baratas de modelos tradicionais nos países ricos. Eles partem de princípios de design e fabricação aperfeiçoados no mundo desenvolvido, mas virados de ponta-cabeça.
Para a dona de casa do povoado, o fogão a lenha foi reinventado para gerar mais calor e menos fumaça. Preço: US$ 23. Para a família da favela que luta para obter água limpa, há um sistema de purificação de água de US$ 43. Para o morador do vilarejo que quer dar ao filho um copo de leite gelado, há uma geladeirinha de US$ 70 movida a bateria. E para as clínicas de saúde rurais, cujas pacientes não podem gastar mais de US$ 5 por visita, há monitores cardíacos e equipamentos para aquecer os recém-nascidos, projetados para custar 10% do que custam em outros países.
Invenções desse tipo representam uma mudança fundamental na ordem global da inovação. Até recentemente, os países ricos serviam aos consumidores ricos e depois deixavam seus produtos e tecnologia chegar aos países mais pobres. Agora, com o mundo desenvolvido em recessão e o mundo em desenvolvimento ainda crescendo rapidamente, as empresas se focam em maneiras de inovar e lucrar dirigindo-se diretamente ao degrau mais baixo da escada econômica.
Elas estão aproveitando o baixo custo da pesquisa e desenvolvimento, assim como da manufatura, para inovar com vistas a um mercado que já é grande e sofisticado o bastante para compensar os esforços.
"Havia um grande potencial de mercado que nem todas as empresas conseguiam alcançar", diz G. Sunderraman, vice-presidente da Godrej & Boyce Manufacturing Co., de Mumbai, que desenvolveu a geladeirinha barata. "Agora os fatores econômicos estão tornando essas áreas cada vez mais atraentes."
Nos últimos anos, a demanda inesperadamente forte por celulares baratos revelou os mercados inexplorados que são os vilarejos e favelas da Índia. Graças a aparelhos de US$ 20 e tarifas de US$ 0,02 por minuto, as operadoras de celular da Índia estão conseguindo 5 milhões de novos assinantes por mês, a maioria consumidores que ninguém pensaria em atender há apenas cinco anos.
Ao mesmo tempo, muitos pobres do país vêm tomando consciência dos bens materiais disponíveis nas economias desenvolvidas, graças à proliferação de novas redes de TV, estações de rádio, jornais e revistas.
Como sucede com todas as inovações, muitos desses novos produtos não conseguirão emplacar. Mas com tantos produtos surpreendentes destinados a consumidores antes ignorados, com o tempo essa tendência pode reforçar os lucros, criar novas empresas e gerar um novo tipo de multinacional, que prospera fora do mundo desenvolvido. A Unilever NV e a General Electric Co. estão atentas.
Jeffrey Immelt, presidente da GE, explicou em recente viagem à Ásia como a gigante multinacional está se reestruturando para aproveitar o que ele chama de "inovação inversa". Enquanto estava na Índia, este mês, ele disse que as inovações em equipamentos médicos feitas no país podem futuramente ajudar a reduzir o custo da assistência médica nos Estados Unidos.
"A maior ameaça para as multinacionais americanas é a falta de concorrentes", diz Vijay Govindarajan, professor da Escola de Negócios Tuck do Dartmouth College dos EUA e principal consultor da GE para inovações. "A concorrência virá dos mercados emergentes."
Os engenheiros indianos estão reinventando os produtos de maneira fundamental, para cortar custos e atingir os bilhões de pessoas no mundo todo que vivem com menos de US$ 2 por dia.
A consciência cada vez maior da existência desse mercado gerou novas empresas, assim como novas divisões em firmas indianas já bem estabelecidas. Todo mundo está nessa corrida, desde pequenas firmas locais - que ambicionam alcance nacional, e depois mundial, com suas invenções de baixo preço - até o maior conglomerado do país, o Grupo Tata.
"Não se trata de cópias baratas de produtos do mundo rico; em muitos casos são produtos muito diferentes", diz Arindam Bhattacharya, diretor-gerente do Boston Consulting Group em Nova Déli. "As empresas dos países ricos não têm explorado esses segmentos com frequência, de modo que são mercados ainda virgens."
As empresas do mundo desenvolvido, assim como a maioria das grandes firmas indianas, sempre ignoraram os mercados mais pobres porque os lucros potenciais pareciam muito pequenos. Era caro demais criar um sistema de distribuição capaz de atender a alguém que faz compras em quiosques minúsculos ou em feiras livres no campo.
Em vez de usar as cadeias de suprimento tradicionais, muitas empresas estão distribuindo seus bens através de grupos rurais de ajuda mútua e microfinanciadores que já atuam nos povoados. Embora as margens de lucro sejam baixas, as firmas esperam compensar com o volume. Muitas esperam vender futuramente a outros mercados pobres e mal atendidos na Ásia e na África.
A Hindustan Unilever Ltd. passou quatro anos desenvolvendo um sistema portátil de purificação de água chamado Pureit. O aparelho, de US$ 43, que parece um minibebedouro, está presente agora em mais de 3 milhões de domicílios indianos, muitos deles em áreas rurais de difícil acesso, graças à sua rede de 45.000 mulheres, que demonstram o Pureit e outros produtos da Unilever em seus próprios lares. Elas então passam a vender os produtos de porta em porta em seus vilarejos.
Alguns produtos podem acabar nos países ricos. Um dos primeiros mercados de exportação do Nano, por exemplo, será a Europa. A versão europeia terá melhorias no interior e nos sistemas de segurança e vai custar mais que a versão indiana, mas mesmo assim será mais barato do que quase qualquer veículo na Europa.
O Godrej, um dos grupos mais antigos da Índia, atuante em todo tipo de negócios, de cadeados a controle de pragas, viu as operadoras de celular vender milhões de novos aparelhos por mês nas áreas rurais mais atrasadas do país e quis aproveitar esse mercado. Como menos de um em cada cinco lares indianos tem geladeira, a Godrej calculou que poderia atrair um novo grupo de consumidores se conseguisse fabricar um produto ao preço certo. O resultado: a "ChotuKool", ou "Geladinha" em hindi, mais parecida com uma geladeirinha de isopor. Ela abre por cima, e mede cerca de 45 cm de altura por 60 cm de largura.
É pequena porque os pobres moram em casas pequenas e não compram alimentos em quantidade. Dotada de alças, é portátil para os trabalhadores migrantes que se deslocam muito. Não tem nenhum compressor que quebre ou faça barulho. Em vez disso, funciona com um chip de resfriamento e ventilador semelhante ao usado para resfriar os computadores. Pode sobreviver a picos e panes de energia elétrica que são comuns nas cozinhas do interior, e tem até a opção de funcionar a bateria. Embora projetada para ter baixo custo, usa um isolamento de alta qualidade para manter os alimentos frios durante horas sem energia elétrica.
Fabricando um produto pequeno e reduzindo o número de peças para cerca de 20, em vez das 200 que entram em uma geladeira comum, a Godrej está conseguindo vendê-la por apenas US$ 70, menos de um terço do preço de uma geladeira comum da faixa mais econômica. E como consome apenas a metade da energia, mantém a conta de luz a um nível que os pobres podem pagar.
Embora tenha a geladeira há apenas um mês, a família de Sangeeta Harshvardhan, na zona rural, já se acostumou ao conforto. Agora a dona de casa em Udgir já pode estocar os pepinos que o marido gosta de comer três vezes por dia, colocar água fresca na garrafa térmica do filho que vai à escola, e não precisa ferver o leite para purificá-lo quando faz chá.
Uma nova empresa, a First Energy, lançada com a ajuda da BP PLC, teve que reinventar o fogão a lenha para apresentar um produto com a conveniência e o preço certo para penetrar nesse mercado.
Na esperança de ajudar as mulheres dos vilarejos que passam horas por dia catando lenha e mantendo o fogo aceso para cozinhar para a família, a firma sediada em Pune adaptou a tecnologia de gasificação empregada nas usinas elétricas para fabricar um forno que queima com mais eficiência e menos fumaça. Os engenheiros do Instituto Indiano de Ciências de Bangalore projetaram um fogão com uma câmara perfurada e um pequeno ventilador que gera a quantidade certa de ar para manter o fogo queimando a alta temperatura, gerando menos fumaça e cocção mais rápida. A fabricante já vendeu cerca de 400.000 desses fogões de US$ 23 em toda a Índia.
Muito disso é possível porque os engenheiros são abundantes e baratos na Índia. A GE Healthcare usou engenheiros de software indianos para desenvolver um eletrocardiógrafo que custa US$ 1.000, um décimo do que modelos normais custavam no passado. A empresa espera vender a tecnologia futuramente nos EUA e em outros países.
(Colaboraram Sonya Misquitta, de Mumbai, e Paul Glader, de Nova York).
Fonte:VALOR ECONÔMICO, 22 DE OUTUBRO DE 2009.
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